sábado, 30 de janeiro de 2010

Dia 13: Em busca da Dra. Ruth

A Dra. Ruth é advogada da Pastoral do Migrante aqui em São Paulo. É descendente de pais bolivianos, e desde que vim começar minha pesquisa em SP em julho do ano passado, já ouço dizerem que eu deveria falar com ela. Apesar disso, só me empolguei mais com a idéia quando soube que além disso, ela também participava de diversos grupos folclóricos bolivianos na cidade, em dias em que eu tenho concluído que os grupos folclóricos são realmente um dos pouquíssimos espaços de sociabilidade boliviana na cidade. Além das feiras e do futebol.

Já tentei marcar um encontro com ela diversas vezes, mas sem sucesso. Da última vez, quarta-feira passada, como sempre, disse para ligar dali a uns dias. Mas aproveitou a deixa para me convidar a ir a um Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Escravo, realizado no Ministério do Trabalho aqui de SP.

Para ser sincero, estou tentando fugir do tema do trabalho escravo. Eu não gosto de falar disso, os bolivianos não gostam de falar disso, e como se não bastasse, já se fala muito sobre isso. Mas pensei que era uma boa oportunidade de fazer contatos. E como não tinha nada melhor mesmo para fazer, fui.

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O Fórum começava às nove da manhã, e não tardei a descobrir que ele, digamos, tardaria, até pelo menos seis da tarde. Cheguei, me deram uma pasta com a programação, mas estava mais preocupado em encontrar a Dra. Ruth, que afinal de contas, eu nunca tinha visto. Na realidade, procurava também por uma tal de Ilana, de quem nunca ouvi falar, mas que assinou o nome na listinha do Forum logo antes de mim, e que aparentemente também era da UnB.

Cheguei a arriscar perguntando a uma moça que parecia poder ser uma Ilana, mas que não era.

Me sentei, e como logo reparei que não conhecia ninguém por ali, comecei a analisar as pessoas e ouvir as conversas para ver se algo me indicaria afinal quem era a Dra. Ruth.

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Após algum tempo do Fórum já ter começado, me toquei que, ao meu lado, conversando já há bastante tempo, estavam os padres Mário e Sidnei. O Sidnei só conhecia de nome, é sociólogo, editor-chefe da Revista Travessia, especializada em migrações.
Mas o Pe. Mario eu já havia até entrevistado, seis meses atrás, e me senti meio constrangido por não o ter reconhecido – ainda mais sendo ele a pessoa mais próxima possível à Dra. Ruth. Àquela altura, achei por bem continuar não o reconhecendo.

Paciência.

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O Fórum em si me surpreendeu. E não digo isso apenas pelos inúmeros breaks para fartos coquetéis com sanduíches, doces e bebidas. O segundo palestrante a falar foi o tal do auditor fiscal, seu Dimas. Fez uma palestra incrível, apaixonada, mas cheia de detalhes e histórias para contar. Enquanto auditor fiscal, fiscalizava diversas fazendas no interior de São Paulo. Encontrava incontáveis trabalhadores de grandes empresas, trabalhando em condições “análogas à escravidão”.

Aliás, ouviria bastante essa expressão naquele dia. Além de “terceirização”, “quarteirização”, “precarização”, “bolivianos”, “quinteirização”, “bolivianos”, e “bolivianos”.

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O Fórum seguiu com diversos palestrantes. Auditores, juízes, donos de oficinas de costura, advogados, procuradores, sindicalistas.
Ah, nada como um Fórum sem acadêmicos.

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Enfim, veio o primeiro coffeebreak, e com ele, minha primeira chance de fazer contatos, e mais que isso, descobrir quem era a Dra. Ruth. Tinha um plano. Não podia falar com o Padre Mario àquela altura, mas já havia descoberto o Paulo Illis no Fórum, diretor do Centro de Apoio ao Migrante, e com quem eu também queria conversar já há algum tempo. Mataria dois coelhos de uma só vez, pois ele certamente conheceria a Dra. Ruth.

Mas o Paulo estava ocupado, e só consegui arrancar-lhe um email para contato e a promessa de me apontar a Dra. Ruth quando ela aparecesse. Aparentemente, ela havia dado uma saída.

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Voltamos para o Fórum. Frustrado até então sem conseguir fazer nenhum contato e aproveitando no Fórum até ali nada além de uma boca livre e umas boas palestras sobre trabalho escravo de nordestinos em latifúndios paulistas, resolvi que nunca era tarde para se reconhecer alguém que está do seu lado – há duas horas – e me apresentei ao Padre Mário.

Me cumprimentou sem problemas, se lembrou de mim e perguntou sobre minha pesquisa. Aparentemente, a Dra. Ruth estava em alguma parte da sala, mas fora do alcance da voz ou do dedo indicador.

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Algumas palestras mais, e enfim, veio o almoço. O programa fazia questão de frisar: “almoço financiado pela Associação Brasileira de Coreanos de São Paulo”.
Era significativo. A tabela oficial de estereótipos paulistas afinal, incluía sempre os bolivianos como escravos em oficinas de costura, e os coreanos, sempre como os donos dessas oficinas.

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E então foi como que um efeito dominó. O Padre Mário se aproximou de mim para me apontar a Dra. Ruth. Estava quase ao meu lado, e conversava com outras pessoas, de terno e gravata. Esperei o papo acabar e me apresentei. Disse que falaria comigo, mas que tinha que falar com uma pessoa antes, rapidamente. Demorou algum tempo, e quando voltou, já estava cercada de pessoas novamente. Aproveitei outra brecha para me aproximar, e acho que ainda falamos por alguns instantes, até que apareceu o próprio Paulo Illis para conversar a Dra. Ruth. Ironicamente, ao se aproximar, voltou-se para mim que já conversava com ela, e fez questão de cumprir o prometido “ah, Rafael, né? Então, essa é a Dra. Ruth, você estava a procurando, não estava?”.

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E o Fórum continuou através da tarde. A mesa agora era composta, entre outros, por um oficinista boliviano e um ex-costureiro-hoje-bem-sucedido advogado coreano. Duas pessoas – ou dois tipos de pessoa – com quem sempre quis conversar, mas nada como uma mesa oficial e um convite da Procuradoria Regional do Trabalho para aquele incentivo extra que sempre falta.

Principalmente pelos coreanos. Até então, jamais havia visto um coreano de SP falando em público. E raramente cedem entrevistas.

O interessante foi o rumo que a discussão tomou a partir de então – somada à fala do Sidnei, o padre e sociólogo. O ataque ao trabalho escravo por parte dos auditores fiscais era direto, e sem ressalvas, e sem diálogos. Acabava se tornando opressivo. Como disse o advogado coreano, “eu trabalhava quando jovem até dezoito horas por dia pregando botão, mas era porque eu queria, pra ganhar dinheiro e pagar a faculdade. De repente, queriam me prender por estar pregando botão? Isso não faz sentido”. Mas a defesa da subjetividade também se confundia com a defesa do próprio trabalho escravo. Mais ainda para os auditores.

É curioso notar como a visão relativista/subjetivista do sociólogo foi atacada de forma quase generalizada como sendo conservadora. Tudo bem, a exposição não foi das melhores. Ainda assim, fato é que parece haver pouco espaço, digamos, na sociedade brasileira, para defesas de subjetividade.

Em última instância, esse conflito parece se resolver com facilidade. A questão é colocar que a escravidão, ou a exploração, não vem de baixo para cima, e sim, de cima para baixo. Parar as grandes empresas e não as pequenas oficinas. Ou talvez não seja tão simples assim.

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O fórum terminou por volta de oito horas da noite.

E eu ainda tinha vários contatos, digamos, por fazer.

Ali foi a hora em que me surpreendi com minha própria agilidade. Comecei a abordar rapidamente as pessoas. Peguei uns cinco contatos e marquei umas cinco entrevistas de uma vez. Teve até gente com quem eu nem ia falar e que veio marcar entrevista comigo. Incrível!

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E teve o Léo. O Léo apareceu em certo momento do fórum, apresentado por um senhor da platéia como o único costureiro presente.

Fiquei curioso, queria conversar com ele. Me apresentei, explicando que pesquisava a comunidade boliviana. “Sí, pero yo soy paraguayo”, foi a resposta que recebi.

***

Ainda assim, conversamos bastante. O Léo trabalhou em oficinas de costura por seis anos em São Paulo, e agora quer tentar mudar de área.

Comecei a entender que podia ter encontrado um ótimo informante quando ele me mostrou que tinha um livro do Roque Laraia na mochila.

Conversamos bastante. Ele me passou uma visão nova sobre as oficinas de costura, e mais do que isso, sobre as possibilidades de ascensão social de um migrante boliviano ou paraguaio em São Paulo, e mais do que isso, sobre as possibilidades de se fazê-lo sem que se trabalhe quinze horas por dia.

Deu a impressão de acreditar que haja muitos contrastes entre os comportamentos de paraguaios e bolivianos. Conheci um amigo seu, dono de oficina, o Humberto. Fato é que os dois eram abertíssimos para falar e, mal me apresentava, já me tinham dito mais sobre a vida em São Paulo do que muitos bolivianos em uma hora.

Marcamos de nos encontrar para conversar mais longamente no domingo. Consegui lhe explicar minha situação, minhas dificuldades em conseguir informações em conversas com bolivianos. Falei sobre o, digamos, ofício do antropólogo. É raro conseguir-se falar claramente sobre isso, e ainda, ser entendido. Mas é justamente quando isso acontece que começa a haver diálogo no campo. E não os eternos monólogos antropológicos das minhas entrevistas recentes.

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O dilema agora é pensar. Como “usar” o Léo? Já não pensava mais na questão da costura, estava até fugindo de questões de costura e de trabalho. O Léo me dá a possibilidade de retomar essa questão. São seis anos de trabalho em diversas oficinas, e ele está disposto a falar.

Por outro lado, é paraguaio, e não boliviano. Será que posso falar sobre a comunidade boliviana de São Paulo através de um interlocutor paraguaio? Por um lado, é até emblemático da palavra interlocução, essa coisa que é e não é ao mesmo tempo, nem brasileiro, nem boliviano, somente um paraguaio poderia me fazer essa ponte. Será? E em que isso implica? Que visibilidade é essa que se dá aos bolivianos colocando um paraguaio para falar por eles?

Claro, ele não vai falar por eles. Vai falar das oficinas, e invariavelmente, também de bolivianos. E só vai complementar os vários relatos de bolivianos que já tenho.
Pode falar sobre a comunidade paraguaia também. E então mudo minha pesquisa, faço uma coisa comparativa, não sei, Paraguai versus Bolívia. Pode ser um capítulo comparativo da minha pesquisa, o Paraguai, o Léo, como partícula semântica intermediária que viabiliza interlocuções.

E até que ponto quero voltar a falar sobre oficinas de costura? Eu não queria mais falar sobre costura, os bolivianos também não querem que se fale de costura e de bolivianos numa mesma frase. E agora? Vou falar de costura?

São vários e vários poréns.

Amanhã vamos conversar. E então talvez eu entenda melhor o que terei pela frente. O Léo é aberto, mas não posso esperar que seja para mim aquele grande informante do Evans-Pritchard entre os Azande. Não teremos uma grande amizade formada em duas semanas mais que fico em São Paulo. Tenho que deixar claro que há alguma base de troca.

Mas o que um antropólogo tem a oferecer em troca?

***

Já na saída, tentei mais uma vez. A Dra. Ruth disse enfim que eu posso ligar para ela. Na terça-feira. E aí, quem sabe, marcar alguma coisa.

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