quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Dia 9: Dia de Alasitas.

Ainda não consegui parar para escrever sobre o domingo passado. Um pouco de preguiça, admito.

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Domingo foi dia da festa de Alacitas em algumas partes da Bolívia, tradicionalmente em La Paz. Em aymara, “alacitas” significa “compra-me” ou “compra-me coisinhas” – já ouvi as duas traduções. Ao longo do dia de Alacitas, milhares de pessoas se reúnem em público ou em família para pedir coisas ao Ekeko, divindade andina da abundância. O ritual é bastante antigo, tem origem pré-hispânica, mas com a colonização, claro, foi se modificando, e acabou sendo de certa forma apropriado pela Igreja Católica.

Enfim, apenas um breve resumo para facilitar a leitura.

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Bom, ainda estou hospedado em Osasco, e parece que por mais que eu acorde cedo, não consigo chegar cedo em parte alguma. Tudo bem, cheguei pontualmente na Praça da Kantuta, meio-dia, hora marcada para o início das festividades – ao menos, das festividades oficiais.

Por oficiais, quero dizer as organizadas pela direção da Feira da Kantuta. Desde a mudança da feira do Pari para o Bom Retiro, lá por volta de 2002, e que marcou a regularização da feira com a prefeitura, seus eventos parecem ter se tornado bastante, digamos, solenes. Assim, ao meio-dia, apresentaram-se no palco as lideranças da diretoria. Don Sergio, o boliviano que teve a idéia de fazer a festa de Alacitas em São Paulo, anos atrás. O cônsul da Bolívia em São Paulo. Depois, para minha surpresa, tocam-se o hino nacional do Brasil, e em seguida, o da Bolívia. Enfim, é sobre o palco que se tem início a versão católica do principal ritual de Alacitas, a challa.

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O padre então assume o microfone e faz algumas orações, antes de abençoar o povo boliviano ali presente. Ao seu lado, a Virgem, posta em um altar improvisado. Embaixo, dependurado no palanque, uma grande imagem do Ekeko. Ao longo da festa, padre e Ekeko toleravam-se, mas pareceram ignorar um ao outro.

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Nota-se: a imagem do Ekeko com o passar do tempo certamente se modificou bastante. Hoje, se assemelha mais a um rapaz andino de bigode e chapéu, carregando nos ombros o quanto pode de sacolas de mercadorias, cereais, pão, e em geral, muitos dólares também. Em última instância, praticamente um sacoleiro.


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O padre então desce o palco e começa a caminhar pela praça. Tem um balde de água benta em uma mão, enquanto com a outra carrega uma espécie de pincel gigante que vai agitando no ar, abençoando a população com seus respingos de água benta.
Distraído, não percebi o padre se aproximando. Acabei abençoado, eu e minha câmera, por sorte, mais resistente à água do que eu imaginava.

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Era praticamente impossível fazer entrevistas com qualquer pessoa aquele dia. Ao menos, claro, para um antropólogo. A câmera da TV Integración fazia concorrência à minha com muito mais autoridade. A equipe era maior, e incluía o repórter, desses tarimbados, um câmera e um assistente – a câmera, vale dizer, o cinco vezes o tamanho da minha.

Qualquer um falava animadamente à TV Integración. Eu, desisti após a terceira rejeição.

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Digo que era impossível também porque a feira estava lotada. Absurdamente lotada. Em um certo momento da tarde, já era praticamente impossível caminhar não tão estreitas ruas da praça. Tampouco podia almoçar. As barracas de comida estavam cheias.
Caminhando pela feira, as mudanças provocadas pela festa ficavam mais claras. Grande parte das barracas, que costumava vender enfeites e outros objetos bolivianos, naquele dia vendia miniaturas de coisas desejadas, que seriam utilizadas depois durante a challa. Passear de barraca em barraca era praticamente um turismo através de manifestações objetivas do imaginário dos desejos de um imigrante boliviano em São Paulo. As mesas estavam repletas de miniaturas de carros, casas, casas com carros, máquinas de costura, e principalmente, dólares e euros – estes, em tamanho real; comprava-se um maço a dez reais.

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Enfim encontro os yatiris, uma espécie de xamã que é responsável tradicionalmente pela realização da challa. Haviam quase dez na praça, sentados debaixo de tendas, e em geral, recebendo grandes filas de pessoas equipadas com seus sacos de miniaturas. Cada família atendida pelo yatiri depositava no chão suas miniaturas. O yatiri “esfumaçava” os objetos por alguns instantes – tem uma palavra melhor para isso, eu sei, se alguém se lembrar me fale. Em seguida, o yatiri e a família atendida abriam uma lata de cerveja, Skol mesmo. Juntos, parte da cerveja banhava as miniaturas, e claro, a outra parte era devidamente tomada pelos familiares.

Quando a Igreja Católica resolveu, tempos atrás, que deveria tentar se apropriar de Alacitas ao invés de proibi-lo, tentou fazer as aproximações possíveis. Alguns sacerdotes ainda se recusam a fazer qualquer coisa que diga respeito à challa. Outros trocam a cerveja por água benta e com ela, abençoa pacientemente as miniaturas que aparecerem. Na Kantuta, o padre escolheu um meio-termo. Não se referiu em momento algum a Alacitas ou Ekeko em suas orações. Deu uma volta pela praça abençoando os presentes com suas pinceladas aleatórias de água benta. Invariavelmente, a água caía nas miniaturas de quem por ali estivesse. O padre seguia, como se não percebesse, e pincelava o ar, abençoando o que aparecesse.

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Por volta de quatro da tarde a Kantuta estava insuportável. A multidão chegara a níveis absurdos. O cheiro de fumaça misturado com cerveja tomava conta da atmosfera. E como se não bastasse, a chuva, que já ameaçava, desceu de vez, e eu, que estava então sentado calmamente comendo uma merecida salteña na única cadeira que restava em uma das barracas, de repente me vi apertado no meio de uma multidão de bolivianos, que se protegiam da chuva.

Sufocando ali no meio, com a salteña no colo, a mochila e o tripé no chão pegando água, além do guarda-chuva dependurado, após muito esforço, consegui enfim deixar a barraca, apenas, claro, para descobrir que já não havia mais quase ninguém nas ruas. A multidão inteira se apertava em todas as dezenas de barracas da Kantuta, enquanto meu guarda-chuva pouco podia fazer para evitar que a tempestade me encharcasse. Procurei em vão por um vão em alguma barraca. Não havia mais espaço algum, a não ser debaixo de uma marquise, a 500 metros da praça – ela também, repleta de bolivianos, pacientemente esperando a chuva passar.

E quando passou, a multidão novamente tomava a feira. E novamente, não se podia andar.

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Enquanto isso, no palco, alguns apresentadores se revezavam e simulavam literalmente uma rádio local. Algumas falas mais importantes eram ditas tanto em castelhano quanto em aymara, e era divertido encontrar as palavras do aymara que eram iguais às do castelhano, ainda que agora me fujam à memória.

Em certo momento, um radialista mais animado, tentou interagir com o público. Primeiro, perguntou de onde vinham as pessoas que estavam lá. “De Oruro?”. Poucos respondiam. “De Potosí?”. Ninguém. “De La Paz?”. E eis que a multidão se manifestava.
Ainda animado, o radialista continuou: “y que cosas que el Ekeko ha comprado para ustedes en 2009? Quizás, un automóvil?”. Uma pessoa parece ter se manifestado. “Una casa?”. Ninguém. “Una máquina de costura?”. E enfim o público manifestou-se.

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Em certo momento, havia tentado eu mesmo fazer esta pergunta aos passantes na feira. Em uma fila que aguardava o yatiri, abordei um grupo de rapazes e perguntei-lhes o que iriam desejar ao Ekeko. Recusaram-se a responder. Outro grupo, contudo, ouvindo mais ou menos a conversa, me chamou, perguntando o que eu queria saber (tinha a câmera na mão naquele momento). Fiz-lhes a mesma pergunta, dizendo que era para uma reportagem. Responderam-me que outro senhor, mais para trás, podia responder-me melhor. Como a resposta me era absurda, tentei explicar melhor a pergunta. Insistiam-me neste outro senhor. Expliquei novamente, que me interessava saber dos desejos das pessoas em geral, de cada um, deles inclusive. Deram-me a mesma resposta.

Saí achando que devia haver algo de muito errado com meu portunhol. Ou que minha pergunta era absurda. Sei que desisti, e como o ambiente se tornava insuportável, e já não havia mais a se fazer, fui embora frustrado.

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