quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Dia 6: Hidalgo e uma Fanta de dois litros.

Acordei hoje sabendo que teria que fazer algo da minha pesquisa, que devia fazer algo. Mas não tinha o que fazer. Parece que todos os acontecimentos se concentraram no domingo, a Kantuta, a dona Francisca, a festa de Alacitas, os filmes que a VideoFoto me prometeu, seu Antunes, a Veronica, a Rocío, enfim, tudo, exceção do contato com a Casa del Pueblo que ficou pro sábado.

Lembrei que tinha pelo menos dois telefonemas que eu podia fazer para tentar salvar o dia - era isso ou ir aleatoriamente à Rua Coimbra, que é o que costumo fazer quando não tenho o que fazer.

Tentei primeiro a Dra. Ruth, uma advogada boliviana especializada em atender a população andina em São Paulo. Há meses ouço falar na Dra. Ruth, mas por alguma razão ainda não havia ligado. Liguei hoje. Ela mesma atendeu. Estava pronto para dizer "hola", mas veio um "alô" com sotaque tão brasileiro que fiquei desarmado e desandei a falar em português mesmo. Disse que haviam me falado muito sobre ela, e por isso estava ligando, ao que ela me respondeu "quem falou sobre mim?". Fiquei encabulado, ouvi o nome dela tantas vezes que não sabia me lembrar de pessoas específicas. Respondi que o pessoal da Kantuta me falava dela, mas logo depois lembrei que poderia dar uma resposta muito melhor citando o nome do Sidnei. O antropólogo Sidnei me disse que deveria falar com a senhora.

O tom de voz mudou e a coisa logo se resolveu. O Sidnei fez longas pesquisas com os bolivianos em São Paulo, é o autor dos trabalhos mais sérios nessa área. E é sacerdote, participava bastante da Pastoral do Imigrante. Como a Dra. Ruth.

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Mas acabamos marcando só para a semana que vem. Tinha ainda um segundo telefonema a dar, para o Andrés Espínola, o cara das ligas de futebol. Me atendeu, um pouco sério no início, mais aberto depois que citei que quem o havia citado foi Jorge Merúvia - citar as fontes, sempre citar as fontes - e logo aceitou marcar entrevista. Para amanhã.

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Estava já me dispondo a passar o dia comprando fitas a oito reais na Santa Ifigênia quando me lembrei de um terceiro telefonema possível. Tinha visto na Coimbra um anúncio, "Filmaciones Ingaví" e anotei o número para ligar depois. Filmavam matrimónios, bautisos, cumpleaños, 15 años, prestes, etc. Liguei com poucas esperanças - seis meses atrás, liguei num fotógrafo boliviano que se recusou a falar comigo, acho que peguei trauma.

Mas este topou. Combinamos para hoje mesmo, às 16h em ponto em frente ao Salão do Chalo, na Coimbra. Desliguei sem me lembrar de perguntar-lhe o nome.

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Esperei vinte minutos em frente ao Chalo até que enfim apareceu. Passou por mim antes e eu meio que sabia que devia ser ele, e ele meio que sabia que era eu, mas entrou e perguntou ao Chalo antes para confirmar. Hidalgo o seu nome. E me convidou para tomar um café num bar ao lado.

Por café, entenda-se uma garrafa de Fanta de dois litros.

Hidalgo tinha um ar sombrio, falava baixo, escolheu uma mesa escondida em um bar escondido, usava boné e óculos escuros. Não tardou a explicar que os óculos escuros eram por uma conjuntivite, que não duvido nada ter pego dele, mas que serviu para atenuar todos os outros componentes do seu ar sombrio. E ao menos não tinha aquele sorriso indecifrável de outras entrevistas.

Mas falava baixo demais, e rápido demais. E não fosse o gravador, eu teria de lamentar mal ter entendido metade da conversa mais longa, aberta e dedicada que já tive com um boliviano desde que comecei esta pesquisa.

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Claro que ainda não tive coragem de conferir como ficou a gravação. Espero que a função de redução de velocidade somada ao aumento do volume funcionem.

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No início ainda achava que ele não estava lá muito disposto a conversar. Assim que me apresentei melhor, começou a me perguntar o que eu queria, se queria que ele filmasse enquanto eu fazia as entrevistas, que ele filmasse a Kantuta, que me seguisse pelas ruas, ou o quê.

Pensando agora, se a bolsa desse para pagar, daria um ótimo assistente.

Mas fiquei preocupado com o mal-entendido, que de fato explicava o porque de tanta disponibilidade para pegar um ônibus em pleno horário comercial só para vir me encontrar.

Mas não ficou chateado, e seguimos sem problemas nuestra charla. Depois entendi que havia sido dispensado do seu outro trabalho pela conjuntivite, e que de qualquer forma tinha a tarde livre. Falou quase sem que eu perguntasse sobre sua vida, a vinda ao Brasil, as doenças que acometeram sua juventude, o inevitável trabalho na área de costura, as festas filmadas, o Brasil que tentava ser Bolívia, mas que não era, as festas que tentavam ser como as de lá, mas que não eram, e parava, e pensava, porque não era igual, o que é que faltava, as festas aqui eram menores, mais rápidas, a comida não era a mesma, as roupas não eram as mesmas, ou era outra coisa. Enfim parou e concluiu. Afinal, mesmo se tudo fosse igual, continuaria sendo diferente, insuficiente.

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Depois de um tempo minhas perguntas haviam acabado e eu estava pronto para ir embora. Vendo que ele não tinha pressa, disse-lhe quase brincando se havia alguma pergunta que eu não lhe tinha feito. Riu, e começou a pensar a sério. E começou a estender a conversa. Começamos a falar sobre o sistema educacional do Brasil e comparar ao da Bolívia, as escolinhas daqui das quais os filhos dele não haviam gostado, mudaram-se para a Bolívia pelas escolas de lá, "más sérias, más disciplinadas; allá los alumnos respectan al profesor!".

Em certo ponto, tomei coragem - como já falava em irmos juntos para Bolívia caso eu fosse para La Paz no fim do ano - e perguntei-lhe se havia a possibilidade de eu acompanhá-lo nas filmagens de alguma festa. Acho que gostou da idéia, ficou de me ligar. À cobrar, claro, já que estou com o telefone de Brasília.

Enfim, exausto após duas horas e meia de concentração extrema para tentar compreender algo daquilo que Hidalgo falava tão abertamente, mas tão baixo, e tão rapidamente, resolvi que não poderia continuar. Inventei que tinha outro compromisso e enfim nos levantamos. Paguei pela Fanta que me deixou empanturrado pelo resto da noite, e o acompanhei até o ponto de ônibus. No caminho ainda me fez parar para comprar um CD de música boliviana num camelô. "Música boliviana no, música NACIONAL boliviana".

Fui embora com a cabeça estourando. Talvez tenha sido o melhor contato que fiz desde que comecei meu campo em julho. E quase não entendia o que havia sido dito. E me esforçava tanto para entender que cheguei já na metade da conversa exausto, e tão exausto que já mal conseguia interagir. Não consigo não pensar que havia tanta coisa que eu podia ter dito.

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